fonte: O Globo
Elaborado na Constituição de 1988 e regulamentado dois anos depois, o Sistema Único de Saúde (SUS) teve seus primeiros 30 anos esquadrinhados em um estudo inédito, liderado por Harvard e elaborado por 12 universidades e instituições, a exemplo da Opas (Organização PanAmericana da Saúde). A pesquisa, publicada na última quinta-feira na revista especializada “Lancet”, concluiu que, a cada nova onda de aperto nos repasses federais de saúde para os municípios, parte do legado conquistado (como a queda da mortalidade infantil) pelo SUS é comprometido. Quatro indicadores básicos de saúde (mortalidade infantil e por doenças cardiovasculares, cobertura pré-natal, expansão do programa Saúde da Família) foram analisados em quatro cenários econômicos distintos: o atual, vinculado à PEC do Teto dos Gastos, aprovada em 2016, e os três outros relacionados ao crescimento do PIB em 1%, 2% ou 3%. — O Brasil tende não só a não alcançar as metas de saúde da ONU para 2030, como a regredir nos indicadores analisados se estivermos diante da manutenção dos gastos federais. E isso vai ser pior nos municípios mais dependentes desses recursos — explica o sanitarista Adriano
Massuda, um dos autores do estudo e pesquisador da escola de saúde pública de Harvard. Abaixo, ele detalha erros e acertos do SUS.
Qual é a avaliação do SUS nesses 30 anos?
A Constituição aprovou as diretrizes para a implementação de um sistema que não teve condições materiais para sua efetivação plena. Por outro lado, a busca pela universalidade foi um dos principais fatores alavancadores da expansão do sistema de saúde brasileiro, o maior impacto sendo o da estratégia da Saúde da Família, de atenção básica. Conseguimos avanços em indicadores importantes, como a mortalidade infantil, que, no Brasil, caiu mais do que a média mundial, fomos um dos primeiros a cumprir a meta da OMS. A expansão do acesso também foi significativa: dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 mostraram que 95% da população, quando precisou de um serviço de saúde pela primeira vez, conseguiu algum tipo de atendimento, seja via serviços públicos ou privados. É um indicador muito bom. Mas, apesar de termos avançado bastante na expansão dos serviços, o financiamento não foi adequado.
Qual é a situação atual do custeio da saúde?
Os municípios acabam pagando a conta, já que são os principais responsáveis por pagar o profissional de saúde, comprar medicamentos básicos… Alguns acabam tendo gastos de 25% de sua arrecadação própria com a saúde.
Em termos de atendimento, onde falta melhorar?
Ainda temos altas taxas de mortalidade materna, por exemplo, e uma grande desigualdade na área hospitalar especializada. Na oncologia, por exemplo, há uma discrepância muito grande nos tratamentos oferecidos.
O Brasil gasta pouco com saúde?
Não. Se formos comparar com outros países, o percentual do PIB gasto com saúde no Brasil não é pouco. O que chama a atenção é a baixa proporção do dinheiro público: 56% dos gastos com saúde são privados, que atendem a 25% da população, contra 44% do público, a rigor destinado a todos. Ou seja, o Brasilé o único país comum sistema universal público comoéo SU Sem que o gasto privado é maior. Não se criou um mecanismo de coordenação entre os setores privado e público.
Como seria esse mecanismo? O previsto era que o setor privado fosse suplementar, mas o que se configurou foi um modelo que duplica a produção de serviços e compete por recursos financeiros, pessoal, provimento de médicos, na forma de incorporação de tecnologias… E isso é ruim para o setor público, pois é uma marca da inequidade brasileira.
Num cenário de enxugamento dos orçamentos de vários ministérios, a saúde deveria ser poupada?
Precisa haver um aprimoramento de condições para que o sistema funcione bem, e isso passa por uma nova organização regional. Não dá para só o município ficar com a prestação de serviço, precisa ser compartilhado com governos estaduais e com o federal. Os recursos existem, mas são desproporcionais e mal alocados. Além disso, a maior parte está no setor privado, então qualquer medida que busque fortalecer o setor privado em detrimento do público é um contrassenso.
Outras políticas do governo Bolsonaro podem influenciar essa precarização?
Sim. Ao analisarem o estudo, submetido no ano passado à “Lancet”, os revisores da revista pediram para considerar o cenário atual. Isto porque, até 2018, havia apenas a austeridade. Agora, surgiu um conjunto de outras políticas que vão influenciar diretamente a saúde. Nós as listamos: a posição do governo brasileiro no Fórum das Nações Unidas contrária ao acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutivo para as mulheres, o que tende a impactar indicadores como mortalidade materna e gravidez adolescente. No próprio âmbito do Ministério da Saúde, houve uma reorganização de programas, como o de HIV, que chama bastante a atenção. No meio ambiente, a velocidade e o volume em que está se dando a liberação de agrotóxicos… Ou mesmo o Ministério da Justiça, abrindo para consulta a redução de impostos para produtos derivados do tabaco.